Nos tempos em que se acompanha a subversão da ordem jurídica constitucional por quem deveria resguardá-la, se avocando o papel de acusador, vítima e julgador, é importante não perdermos o Norte na defesa dos indivíduos contra arbítrios estatais. E é nesse contexto que cabe alertar para uma ilegalidade de longa data tolerada na seara administrativa ambiental em Mato Grosso.
A Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso – SEMA-MT é a principal responsável pelas autuações de infrações administrativas ambientais cometidas no estado, ainda que o IBAMA muitas vezes invada a competência estadual ignorando os ditames da Lei Complementar Federal nº. 140/2011.
Por se tratar de órgão administrativo, a SEMA-MT é ao mesmo tempo acusadora e julgadora, pois compete à Secretaria lavrar o auto de infração e depois processá-lo, atenta ao devido processo legal, para constatar a pertinência ou não da acusação inicial lançada contra o “poluidor” (termo genérico que engloba qualquer autor de infração ambiental, mesmo que de desmates, por exemplo, como estabelece a Lei nº. 6.938/1981, art. 3º, IV).
Sobre o devido processo legal: a primeira questão a se verificar é quem tem o direito-dever dentro da SEMA-MT de lavrar autos de infração ambiental diante de suposta ocorrência de ilícito administrativo. Desde 2006 vige em Mato Grosso a Lei Estadual nº. 8.515/2006, de 30 de junho, que determina como único agente competente da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso para lavrar auto de infração e iniciar o processo administrativo por suposta infração ambiental o Analista de Meio Ambiente.
Assim é que desde junho de 2006 todo e qualquer auto infracional da SEMA-MT lavrado por qualquer outra pessoa integrante da SEMA que não analista de meio ambiente é absolutamente nulo, porém parcamente obtém-se tal reconhecimento na esfera administrativa, mesmo que em segunda instância (caracterizada pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso – CONSEMA-MT).
Se discute até hoje a competência legal para lavrar auto de infração dos auxiliares de meio ambiente e dos agentes de meio ambiente, também da SEMA-MT, por serem servidores da Secretaria que é parte do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, logo, ente responsável pela fiscalização ambiental e, apenas por isso, teriam aptidão para lavratura de autos de infração.
Tal argumento se funda na já mencionada Lei nº. 6.938/1981, que assim estabeleceu em seu artigo 6º:
Art 6º – Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, assim estruturado: […]
V – Órgãos Seccionais: os órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental; […]
1º – Os Estados, na esfera de suas competências e nas áreas de sua jurisdição, elaborarão normas supletivas e complementares e padrões relacionados com o meio ambiente, observados os que forem estabelecidos pelo CONAMA. (grifado)
Somam-se a ele as disposições do artigo 70 da Lei de Crimes Ambientais e Infrações Administrativas (Lei nº. 9.605/1998):
Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.
1º São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha. […] (grifado)
Sob tais argumentos, erroneamente, muitos conselheiros do Conselho Estadual de Meio Ambiente – CONSEMA-MT, órgão recursal, sustentam que todo e qualquer membro do governo estadual pela SEMA-MT, seja servidor, comissionado ou terceirizado possuiria poderes para lavrar autos de infração por serem “membros de órgão do SISNAMA”; a própria SEMA-MT, sempre se negou a reconhecer a incompetência do agente nos termos indicados.
Malgrado essas posições de SEMA e CONSEMA-MT, é evidente que não é qualquer servidor, em sentido amplo, do Estado de Mato Grosso ou da Secretaria de Meio Ambiente que pode iniciar um processo administrativo pela lavratura de auto de infração, e isso é textualmente determinado na legislação.
O próprio artigo 70 da Lei nº. 9.605/1998, em seu §1º, deixa claro que o servidor precisa ser designado pelo ente membro do SISNAMA para exercer atividade fiscalizatória, e Mato Grosso realizou essa designação na SEMA-MT através da Lei nº. 8.515/2006.
Conforme se denota do teor do artigo 4º da Lei nº. 8.515/2008, que criou a carreira dos profissionais de Meio Ambiente no estado, a fiscalização incumbe exclusivamente aos Analistas de Meio Ambiente, senão vejamos:
Art. 4º A Carreira dos Profissionais de Meio Ambiente é constituída de 3 (três) cargos:
I – Auxiliar de Meio Ambiente;
II – Agente de Meio Ambiente; e
III – Analista de Meio Ambiente.
Parágrafo único São atribuições dos ocupantes dos cargos:
I – Auxiliar de Meio Ambiente: atividades administrativas e logísticas de nível básico relativas ao exercício das competências legais do órgão ambiental;
II – Agente de Meio Ambiente: atividades administrativas, de execução e de apoio relativas ao exercício das competências legais do órgão ambiental;
III – Analista de Meio Ambiente: atividades de formulação, organização, supervisão, avaliação, fiscalização, licenciamento e demais serviços prestados relativos ao exercício das competências legais do órgão ambiental.
Ora, como se sabe, a Administração Pública só pode agir nos limites claros da Lei, e a Lei desde 2006 atribui a cargo exclusivo a função de fiscalização e lavratura de auto de infração.
Porém, malgrado essa clara disposição legal, a SEMA continua dando andamento aos tantos processos lavrados por servidores que não analistas de meio ambiente. Mesmo que desde junho de 2006 não seja permitido a Assessor Técnico, Agente de Meio Ambiente, Auxiliar de Meio Ambiente ou mesmo “agente fiscal” lavrar sozinho auto de infração, cabendo esta tarefa exclusivamente ao Analista de Meio Ambiente, os órgãos estatais quase sempre ignoraram a legislação.
É óbvio que não basta ser “membro do SISNAMA” para estar habilitado a determinadas funções. De forma lúdica para facilitar a visualização: ao menos tecnicamente, os copeiros e recepcionistas da SEMA são “membros de órgão do SISNAMA”, mas não podem lavrar Auto de Infração, ainda que componham, indiretamente, a estrutura do membro do SISNAMA.
Mas é fácil concluir isso pensando em cargos de atividade totalmente alheia à fiscalização (como copeiro ou recepcionista), porém, essa regra se aplica a qualquer outro cargo da SEMA-MT que não o legalmente estabelecido; para comprovar essa proibição e exclusividade de ação dos Analistas de Meio Ambiente, nem mesmo o Secretário de Estado do Meio Ambiente detém competência legal para lavrar autos de infração, mesmo sendo os chefes máximos dentro da Secretaria e indiscutível membro do SISNAMA.
É esta a expressa imposição legal, não podendo os Princípios Constitucionais da Legalidade e Moralidade, por exemplo, serem usurpados pela Administração Pública em nome de uma pretensa defesa do Meio Ambiente. Note-se que a legislação está vigente desde 2006, porém, muitas vezes ainda é sumariamente desrespeitada, malgrado hoje a SEMA-MT se atine para que um analista de meio ambiente subscreva o auto de infração junto aos demais elaboradores da acusação.
É gravíssima a situação ao pensarmos que Autos de Infração ilegais, maculados desde o início por serem lavrados por agentes incompetentes, logo, inábeis a produzir efeitos jurídicos, continuem tramitando sem serem cancelados de ofício, como deveriam, e muitas vezes produzindo títulos executivos ao Estado contra o Cidadão após o trânsito em julgado administrativo.
Quanto à competência para lavratura de Auto de Infração pela Polícia Militar Ambiental, esta merece um artigo exclusivo, mas adiante-se que apenas se vislumbra tal possibilidade pelo Batalhão Ambiental e, com o advento da Lei Complementar nº. 639/2019, aos Bombeiros Militares, a eles indistintamente.
Nenhuma espécie de preocupação com o Meio Ambiente pode ser usada para romper a ordem legal, ignorar claras disposições normativas em defesa de um processo infracional eivado de máculas insanáveis desde o início. Se o autor de infração administrativa ambiental não for penalizado por conta de tal nulidade processual, não é culpa dele se o Devido Processo Legal não foi seguido e acarretou nulidade, sendo que a responsabilidade, ao menos moral, de a infração restar inadvertidamente sem punição de quem não agiu conforme ditames legais.
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